sábado, 25 de junho de 2011

Ele me ama como se eu fosse um animal de estimação, quer que eu seja pálida e tenha olheiras, não ia se importar nada, uma mulher frágil e macia como se fosse feita de pelúcia, quer as minhas veias aparecendo debaixo da pele branca para ver o avesso do corpo, para ter a sensação que lhe pertenço, para ser mais fácil me matar, desenha com uma caneta imaginária as veias do meu pulso, como se planejasse um corte diz, "aqui você morreria em apenas três minutos" e toca na veia do meu pescoço, aqui em três segundos, encosta um revólver imaginário em meu seio e diz "aqui morte instantânea sem dor nem sofrimento" e dispara enquanto faz o som do tiro em minha boca, seu corpo dentro do meu, teu corpo é meu brinquedo, tenho ciúmes desta tua veia que escreve a letra S, digo, vou ler o que as tuas veias escrevem, ele diz, escreve na minha coxa com uma caneta imaginária e beija a pele onde é mais branca nas partes de dentro das coxas e nas partes de baixo dos braços, teu corpo é meu diário, se algum dia eu te deixar quero que me mates, digo, eu te quero pálida, obedeço, fico branca, ele faz um corte desde a garganta até o púbis, eu te amo por dentro, quero ver o teu coração, beijar os teus pulmões, arrancar o teu útero, acariciar as tuas finas clavículas, e passa a medir meu corpo, aos palmos as coxas os braços os quadris, cinco dedos de joelhos oito de dedos de altura do pescoço, pede que eu mostre os dentes lá no fundo da boca, a língua, as partes mais vivas, as subterrâneas os fossos os torreões, as tuas jóias, passa a unha na minha pele, segue as veias, formas que nascem do movimento, acompanha as variações do meu rosto e a arquitetura dos pensamentos, desce pelo ombro, nenhuma linha reta, as curvaturas da carne e os drapeados dos cabelos, as sombras azuladas dos domos, as ossaturas suspensas, Teu corpo é minha igreja, o corpo é pleno de revelações religiosas, a imagem de Deus, mas há tantos milhões de enigmas no corpo, ele diz quando estou lânguida e toda lhe pertenço, olhar é amar, olhando continuamente sabemos o quanto se modifica tua geometria, teu corpo é minha casa, onde finalmente posso me sentir só.

Ana Miranda

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Ruídos. Raul chegou em casa. Ainda que tivéssemos filhos, eu reconheceria os passos de Raul. Aquele par tênis que não permitia que seus passos fizessem lá muito barulho, aquele passo meio folgado, meio ansioso. Aqui, do andar de cima do nosso sobradinho, eu grito qualquer coisa só pra que o Raul saiba que eu tô aqui. Só percebo agora que o quarto tá fedendo a cigarro. Ele vai reclamar. Vai reclamar de novo. Vai vir com aquelas conversas de que eu já tenho idade pra saber que isso acaba com o meu pulmão, que qualquer dia vou acabar morrendo de câncer. Raul, raulzinho, é a transcendência. Eu preciso transcender. Pensei tantas vezes em trocar Raul por outros homens, mas fica difícil depois de ter deitado sobre aquelas costas. Aderi a mais cigarros. Afinal, não falamos de costas aleatórias. Foi ali, sobre aquelas costas, que eu ouvi. Como é que aquelas mulherzinhas todas cheias de si falam? Os sininhos!? São sininhos que se ouve quando você sente aquela coisa de "puta merda, achei o cara"? Eu que me achava tão desmedida, tão cheia de afinidade com o mundo onde tudo é permitido e nada proibido, eu que atravessava madrugada entre um trago e outro, achando que com isso garantiria meu passe de estudante reacionária em prol da liberdade. Nosso sobradinho, eu sentada sobre a máquina, você esquentando alguma coisa pra comer no microondas. Daqui a pouco você sobe aqui pra reclamar do cinzeiro cheio, do cheiro de cigarro. Raul sempre foi o cara que entendeu que eu, no fundo só tava afim de me embriagar de palavra. Só não entende o diabo do cigarro. Quem não escreve, quem não vive a vida desse nosso jeito boêmio, desse nosso jeito tão cheio de arte, tão cheio de poesia (porque só vivendo assim que Raul e eu não nos sentimos mortos) não entende e tão pouco entenderá. Amanhã lá vem a dor de cabeça fodida, a ressaca de quem dorme caído e abraçado à garrafa de vinho. Mas eu só estou aqui, sem vestígio de vergonha pra despir o meu amor. Embriagada de palavra, de verso, de tradução. Tentando decifrar o sentimento mais intenso e assim, fodendo comigo, perdendo sangue, sob o lençol branquinho, branquinho mas tão recheado de palavras abortadas. Lá vem a dor da perda, a dor física desse aborto, todo meu sexo sendo só dor e jorrando sangue para todos os lados e eu sem me importar, só querendo me livrar dessa vidinha medíocre que me habita, só querendo que vá embora, que saia do meu corpo cada ínfima palavra, que outrora usaria e insistiria em usar. Palavras que não mais tratarei de usar pois não quero jorrar assim de novo. Quero ficar sã. Quero ficar sóbria. Quero me fechar, quietinha, inerte em meu quarto. Raul, não vem fazer com que o assoalho cante e denuncie seus passos. Eu te sinto, eu te ouço mas não chega perto. Deixe-me comigo mesma enfrentando sozinha todo meu purgatório em vida. Deixe-me comigo e com todo meu silêncio de gente carente e violentada.

terça-feira, 8 de março de 2011

Sobre a loira do nono andar 1

Encontrar um emprego andava difícil feito procurar agulha em palheiro mas Marcos e eu entramos nessa empreitada de maneira assídua. Fomos artistas, metidos a cineastas por longos anos de nossas vidas. Vivíamos duros, não por falta de talento. Sonhávamos com a direção de arte mas só nos mandavam caçar objetos, aparentemente inexistentes, para o cenário. Foi quando procurar um emprego fora do meio artístico se tornou algo mais pragmático. Talvez não fôssemos, em essência, artistas. Sem maiores dons, cedemos.
Marcos, embora já tivesse entrado na casa dos trinta, ainda tinha a aparência bem adolescente. Usava algumas coisas despojadas, uma barba por fazer. Eu era um quarentão com aparência de quarenta e cinco. Não éramos casados, compartilhávamos algumas bebedeiras e por essa única razão, morávamos juntos. Não tínhamos por hábito cuidar da aparência física mas a procura por trabalho em algum escritório maçante teve que nos fazer mudar alguma coisas, começando por aí. Dois homens fumantes de meia idade, o que mais se esperava? Lavávamos a louça com pouca freqüência e havia algum tempo que tínhamos aderido ao uso de copos, talheres e pratos de plástico. O apartamento andava aos trapos. Andava não, falando assim dá ar de um lugar que algum dia fora organizado. O apartamento 272 nunca foi exemplo.
O ápice de organização que chegamos foi durante o rascunho de uma tabela com o revezamento dos dias em que cada um de nós poderia levar alguma mulher até lá. Estabelecemos regras, estipulamos horários, armamos esquemas de revezamento. Nossa idade nos proporcionava certa maturidade sexual e nossos instintos pré-adolescentes já haviam sido levados há tempos mas, como não tínhamos medo da solidão, ainda nos cabia algumas travessuras.

Sobre a morte - Parte 2

Pouco resta pra quem tem o coração cravado. Não que não haja mais trabalhos a serem trabalhados ou estudos a serem estudados. Há ainda uma vida a ser vivida. Mas pra quem tem o coração cravado, é como se o resto do mundo e das pessoas e dos lugares fosse insuficiente. É necessário somente que alguém venha retirar-lhe a flecha acertada no meio do peito. Clichês que dizem que o tempo cura não justificam o tempo que passei estirada em minha cama querendo que todo o resto se imploda.
As estações se passam. O dinheiro vai se esgotando. É necessário que eu me mova. É necessário sair do casulo e tornar-me borboleta novamente. Talvez dessa vez eu tente arranjar emprego fixo assim que terminar a tradução. Coisa séria, escritório, carteira assinada. A náusea aumenta só de pensar em uma hipótese dessas. Mas a distração que algo dessa proporção me traria ainda soa interessante. Recuperação não deve ter a ver com amassar algumas folhas rabiscadas e muito menos a ver com o arremesso a distância entre a escrivaninha e o lixo.
Recuperação deve ter a ver com achar alguém melhor. Iniciei-me logo nessa decisão. Havia ainda poucos homens além de você na minha listinha telefônica. Risquei o nome de mais alguns totalmente boçais. Restou uma meia dúzia. Resolvi arriscar. Aquele tempo chorando e doendo tinha me enfiado naquela espécie de morte gradual e eu precisava sair pra fora da cova. Quis ligar pra alguém com nome de artista porque seria mais fácil fingir prazer ou gosto mas não achei ninguém que me despertasse um ideal artístico. Sem outra possibilidade, liguei pro Luiz. Por nenhuma razão em especial a não ser o fato de que sexo ali era mais garantido. Eu poderia ser atriz com uma capacidade tão grande de dissimular meiguice. Poderia chamá-lo pra um sorvete, um café, um whisky. Ele toparia qualquer um dos três. Fomos pra um bar. Não sei se é razoável chamar aquele boteco de bar. Fica evidente que a escolha fora minha. Sorvete soaria juvenil demais, café soaria inteligente demais e eu só queria sexo depois de ter colocado algum álcool correndo em minhas veias.
É engraçado o primeiro encontro depois que se termina um relacionamento. É engraçado o primeiro encontro de coração cravado. Todas as frases que eu conseguia formar eram feitas pra impressionar você. Eu tinha a sensação de que havia entrado em um barco que só fazia se afastar do cais, mas eu era a louca que continuava a gritar, continuava a mandar sinais de fumaça ainda que soubesse que a distância só aumentava e que sequer ainda era possível ver algum sinal. De som ou fumaça. Luiz parecia-me o mais previsível dos homens. Falou alguma coisa sobre uma meia dúzia de filmes que viu. Ele gostava de umas coisinhas boas, mas tinha um humor péssimo e o meu exagero ficava escancarado perto da tranqüilidade dele. Que pedisse a conta de uma vez e que fôssemos para um quarto tão rápido quanto possível.
Luiz, mas já acabou o whisky, seu merda? Não vem com esse papinho de que misturar bebida com remédio tarja preta não faz bem pra saúde. Você não me quer bem louca mas deixou que eu bebesse até o ponto em que você sabe que eu ficaria fácil pra que você me comesse. Então me dá whisky, seu merda. No boteco a bebida é responsabilidade minha, mas aqui, sob teu teto, você me quer sóbria? Vá pra merda.
A primeira medida depois de vinte e oito de junho foi desligar os celulares e arrancar o telefone do fio. Quis que ninguém soubesse de mim. Como se o mundo todo estivesse prestes a rir da minha dor. Como se a minha dor estivesse pulsando tão viva dentro de um corpo morto. Meus jargões trazendo esse ar obviamente sofrido a todas as minhas palavras. E que se você ligasse e encontrasse só a caixa postal me acharia ocupada o bastante para te atender. Então, me desconectei. Da palavra, de meus números de telefone. Fechada, onde só eu e a senhora minha mãe pudessem me encontrar.
Fingir-me de morta pra ver o tempo passando mais rápido. Suicídio que era enfrentar o relógio, principalmente o analógico. Horário foi por muito tempo uma coisa vaga. Podiam ser três ou seis ou nove. Da manhã ou da noite. Só me cabia enfrentar tudo com literatura, música, sexo casual. Fingindo-me de morta. Pra você sentir o buraco que deveria ficar sua vida sem mim. Pra que você me procurasse com uma fúria desesperada e me xingasse e me viesse, ainda que segurando pedras em cada uma de suas mãos. Você veio, algumas vezes. Pedindo-me pra que não esquecesse.

Sobre a morte - Parte 1

Tá legal, somos brasileiros. Mas nem por isso temos todos a mesma obrigação de encarar o carnaval com os mesmos olhos comovidos. Nós, jornalistas, por exemplo, trabalharemos incessantemente pra você, que finalmente conseguiu aquela folga, leia as notícias frescas da política e do futebol. Além disso, cobrirei com perfeição os desfiles das escolas de samba, ainda que ache todos eles insuportáveis. Fiz jornalismo pra escrever crônicas ou críticas literárias mas acabei falida e nem formada estou. Talvez por isso eu esteja falida. O mundo é assim: ou você nasce especialmente bom em alguma coisa e ganha um monte de dinheiro com isso, ou você constrói um currículo maravilhoso. Não caibo em nenhum dos dois casos. Topei o trampo pra cobrir os benditos dos desfiles. Chamem-me de velha. Sou razoavelmente jovem e não desfilo pra escola de samba nenhuma e meus bons amigos todos estarão na praia, ainda que chova. Restei na capital, ainda que apaixonada por essa cidade, não me lembro de ter morrido. E pô, curiosamente também queria sentir isso de pirar quando chega o carnaval. Eu só vou fazer a mesma coisa que faço sempre. Vou me levantar, vou atrás de notícia, vou chegar em casa, vou misturar o pó pronto de cappuccino da Nestlé com leite fervente e depois que terminadas minhas horas sobre o computador, vou até o bar.
Chamo-me Ana. Um nomezinho de merda. Não se cria apelidos pra uma Ana. No máximo surgem aquelas coisas carinhosas tipo “Aninha”. Escrevo porque acredito no amor. A única verdade em mim é essa. Não que a escrita seja puramente fruto do meu egoísmo...
Cheia de olheiras pesadas, parece-me que a vida está sempre arranjando um novo jeito de me castigar pela minha mania de querer uma revolução sentimental. Quietinha, fecho meus olhos tentando fazer com que meus olhos pesem um pouco menos, mas percebo, em pouco tempo, que é só a minha alma pendendo para o lado, se desconectando do meu corpo. Mas hein, aonde a malandra acha que vai? Do lado de fora a chuva vai se aquietando, mas agora o estrago já está feito por toda a cidade. Prevejo trânsito. E eu quietinha, de olhos fechados, no banco do passageiro com a alma pendendo mais pro lado direito do que pro esquerdo. Sinto-me torta. Mamãe comenta que costumamos usar muito um lado só do corpo e do cérebro. Mal domino as atividades motoras sendo só destra, imaginem se me dessem a capacidade de trabalhar com tranqüilidade usando as duas mãos. Penso em arrancar os olhos fora para que não pesem mais. Não é lágrima, é só o resultado do desassossego da noite. São Paulo, terra da garoa, fica intragável quando não chove. Mas hoje em dia vive-se o apocalipse. São Paulo não me traga todinha, imponho-me sobre ela.
Rodo a chave na maçaneta do meu apartamento quarto e sala. Está tudo mudo. Minha mãe entra pra me ajudar com as compras. Meus olhos pesando, meu corpo todo se enfraquecendo e minha mente exagerada prevendo desmaio ou morte. Eu sempre acho que vou morrer. A qualquer instante como se morrer fosse tão óbvio quanto dar um espirro. Largo as compras em cima do armário, virginiana que sou, temo sofrer de TOC. Lavo todas as frutas, higienizo tudo. Eu te disse que era um golinho só de vinho mas que depois você poderia ir. Não me estenderia mais, nossa novela mexicana já rendia capítulos demais, o público e até mesmo seus atores estavam todos saturados e andavam reprisando episódios até mesmo em dias que não eram sábados. Então eu te disse que era só um golinho e você poderia se levantar da minha poltrona vermelho-salmão preferida e ir embora. Parar de beber do meu vinho e sugar do meu amor. Mas você ficou quando deixou o cd daquele cantor de jazz meio fanho e meio deprê. Jazz me lembra tanto a gente... Me lembra tanto de quando íamos a jantares elegantes fingindo alguma decência e cruzávamos os pés embaixo da mesa e passávamos no supermercado pra comprar bebida e éramos cheios dos clichês, nosso amor era um puta de um clichê. Era uma história amassada, cuspida, rascunhada. Era um roteiro mal escrito. Ou escrito com tanto fervor e urgência que aquelas idéias miúdas que servem pra dar complexidade ao medíocre acabavam se perdendo. Tem uns livros em cima do criado mudo, uns manuscritos em alemão que tenho que traduzir até amanhã, além da matéria do carnaval de São Paulo, mas tem você ficando no cd de jazz. E São Paulo esquentando e eu só pensando que é bom que esses brasileiros leiam muita literatura alemã pra que assim eles paguem o meu ar condicionado móvel.
Você largou de mim naquele vinte e oito de junho. Não estava tão frio como costumava ficar no inverno. Sem precisar usar luvas, ficava mais fácil escrever sobre a puta falta que você me fazia. Seus discos de jazz me trouxeram uma espécie de amor por esse tipo de som. Passei a freqüentar sozinha esses bares com clima meio blasé. Passei a não me satisfazer com nada mais suave do que whisky. Passei a querer queimar meu corpo ateando fogo a todos os meus órgãos cada vez que metia álcool goela abaixo. Só passei a querer sobreviver quando percebi que meu ofício é atiçado por jazz e por álcool. Não fosse isso, talvez hoje eu tivesse cedido a esse grande espirro que é a morte. Úlcera, overdose, arritmia, atropelamento. Eu devia ter ido com essas coisas.