sábado, 18 de setembro de 2010

Aleatório

Nunca fui de dar desgosto. Nunca me meti nas brigas dos bares que frequentei, acertava a chave na chavedura quando voltava das minhas festas cheias de amigos bêbados e pseudo-intelectuais. Mamãe e papai só tem algum desgosto quando se trata de pele. Sou vítima da pele. Pele que pede pele. Mamãe e papai nunca aprovaram ninguém que eu trouxesse em casa. Cabeludos comunistas, tatuados, caras querendo mudar o mundo, caras que só queriam salvar a deles. Olhavam meio torto mas não criticavam porque meu olhar apaixonado nunca contradiz o que faço do meu corpo. Eu não era assim; eu era sóbria, com todos os impulsos em ordem, os vícios, controlados. Daí depois eu me mudei pra um apartamentinho na Vila Madalena, o que piorou tudo. Apartamentinho de merda que me induzia ao pecado. Anos e anos de pureza e ingenuidade, achando que com isso, por mérito, fosse arranjar o homem da minha vida. Filha da América, hoje meu único crime é de cunho passional. Catando migalhas desses merdas que me contorcem o estômago por dias, meses, às vezes anos. O cara que eu elegi como certo me deixou com gosto de vodka e lágrima na boca. Deixou-me apenas como dona dessa prosa meio byroniana, meio alambicada. Vida de mulher desregrada nunca foi coisa pra mim. Mas agora tô aqui, apartamento 77 nesse bairro tão charmoso que é a Vila Madalena, de costas nuas pra um cara que eu sei lá quem é esse porra. Faz diferença? Ele deve ser um rascunho daquilo que eu sonhei pra mim. Não quero usar meu humor ácido com ele, não quero muito menos que ele saiba que eu só leio e escuto coisa boa. Primeiro que se eu falar que leio, eu vou querer ler no pé do ouvido dele, mas isso é coisa de gente apaixonada, e não tenho mais força pra me doar pra gente que eu não sei o nome. Meu lençol branco e meu corpo branco se confundindo. Minha perna esbarra na dele, desassosegada não consigo pregar os olhos. Esse cara dormindo do meu lado nem deve ser tão ruim assim. Esse cara deve ter um nome, deve ter família em alguma cidade do interior, talvez tenha terminado o curso superior. Eu sei lá quem é esse cara. Sei que ele veio me visitar no meu apartamentinho. Veio matar o pedido da minha pele. Solto meu corpo do dele, vou até a varanda, dou um trago no cigarro, prendo o cabelo. Eu não quero mais parecer sexy pra ele. Tudo que eu quero é que ele levante, pegue a mala pós-trabalho dele e dê o fora do meu apartamentinho! Quem ele pensa que é pra conhecer todo meu mundo, ver meu corpo, sentir meu corpo, beber do meu vinho, falar do meu quadro da Torre Eiffel e me chamar de linda? Pô, eu não sei nem o nome desse merda! Alô, seu merda, faz pouco mais de três meses que saí de um relacionamento fodido com um cara fodido, não me peça pra te amar! Ele não me pede nada, ele só dorme quietinho. Eu sou mesmo descabida até dentro do meu próprio metro quadrado. Então eu choro porque aquele merda fica lindo dormindo. E tive vontade de acordá-lo e beijá-lo e abraçá-lo e falar que tudo bem ele não ser nada do que eu tava esperando, ou falar que tudo bem, eu permito que mais do que dentro de mim, ele entre na minha alma, na minha vida, eu penso que com ele eu vou fazer diferente, eu não vou pedir pra ele tomar café, ajeitar as coisas dele e dar o fora. Eu quero pedir que ele fique, mas a minha alma está viciada em querer que as pessoas dêem o fora porque sempre viu elas dando o fora espontaneamente que fica até assustada quando alguém não some no dia seguinte. Mas e se ele sumir? Ele vai sumir, eles sempre somem. Ele precisa de um tempo pra ele, pra pensar se vale a pena deixar a ex menina dele pra lá. Eu valho a pena, eu sou um mulherão. Eu quero gritar, berrar isso no ouvido dele. Que por trás dessa armadura tem uma menininha meiga e frágil de dez anos de idade. Uma menina que lê Leminski e dona de uma ironia mais cortante do que a jaboriana. Uma menina que não sabe se continua fumando cigarro na varanda ou se corre pra cama abraçar esse cara x, esse cara com um rosto mas ainda sem um nome. Eu que acho todos eles uns putos que fodem qualquer romance, eu que não aguento mais me resignar, que não aguento mais planejar. Eu que não sei se quero escolher esse merda. Deixa ele descobrir que eu escrevo. Deixa ele descobrir que eu escrevo SOBRE ELE! O cara vai ficar furioso. Ou não. Eu não conheço esse cara. Conheço o corpo do cara, o cara é um tesão. Um t maiúsculo, ainda que isso fique infinitamente brega assim escrito, rascunhado. Mas sei lá como ele reage quando alguém pede a ele alguma coisa de última hora, muito menos sei como ele reagiria se ouvisse: "Olha, sua mina não pára de escrever textos te chamando de 'seu merda' e usando 'porra' como ponto final." Enfio o fone no ouvido. Às quatro e meia da manhã, dessa quinta-feira silenciosa, pego outro cigarro. Dezessete invernos amando de uma maneira tão pura, quase religiosa e agora isso. Sinto meu corpo sujo. Minha'lma suja. Mas isso vai acabar. Promiscuidade é coisa de gente imatura. Vou provar que tenho culhão de enfrentar essa merda toda sem precisar me doar por carência, sem precisar de alguém do outro lado da linha só me sentir completa e feliz. Ainda que ter alguém nada a ver do outro lado da linha me desfaça inteira. Ou que me faça infeliz pra caralho. Agora eu tenho alguém na minha cama. Tenho um texto na cabeça, já pronto pra ser colocado na rede. Deixa esse puto saber que vou ganhar dinheiro com essa noite. Essa noite do caralho! Pego o terceiro cigarro, enfio o jeans e saio pra comprar pão e leite. Morar na Vila Madalena é isso: ter todas as padarias abertas prontinha pros baladeiros de plantão. E que se foda se é quinta-feira. A vida é linda, o cara na minha cama é lindo, e eu vou sair pra comprar pão às quatro e quarenta e seis da manhã. Mas meu ascendente é em escorpião e eu vou precisar de muita sorte pra não ter uma crise de bipolaridade e expulsar o cara dali antes de saber o nome dele, antes de saber os gostos dele. Ele tem cara de quem ouve jazz até tarde, ele tem cara de quem vai a esses bares incríveis nas melhores cidades mundo a fora. Desses bares que ficam no ponto mais alto da cidade, que você vê tudo, sabe? Ele tem cara de quem vai a bons bares. E não tem cara de ser bêbado-retardado. E vou parar de falar do cara e falar da minha rua, porque são quatro e cinquenta e dois da manhã, é muito cedo pra eu dar algum sinal de menina apaixonada. Menina de jeans e meu cabelo ainda preso no mesmo rabo feito uns vinte e sete minutos atrás. Também se errei a conta, pouco posso fazer. Sou íntima da palavra, da letra e não dos números. Mas quero falar do tempo porque quero que meu leitor saiba de como o tempo estava passando leve porque eu estava leve. Depois de três meses me sentindo podre, sentando e chorando no chão do banheiro, a leveza vinha beijar meu corpo. E volto pro meu apartamentinho, acho até que já posso colocar meu cd do Piazzolla pra tocar. Acho até que vou abrir a internet e comprar aquela passagem pra Buenos Aires. É, isso mesmo, vou pra essa cidade maravilhosa que é Buenos Aires! Sozinha mesmo, nem precisa ter esse cara. Daí eu me deito de novo ao lado dele, e leveza, leveza. Talvez, depois de algum tempo, eu até possa mostrar pra ele que também sou bicho, que também babo enquanto durmo. E eu fico olhando e olhando, eu fiquei a madrugada inteira olhando pra um merda de quem eu não sei nem o nome. É quando ele acorda lindo. E toma café lindo. André, André, André, André! Ele me pergunta como uma menina com tão pouca idade ouve Piazzolla. Ah, então ele conhece Piazzolla! E eu amo o cara. Então ele vai embora, tão lindo. E eu branquinha, branquinha, já enrolada de novo no lençol branquinho, branquinho. Passo o dia escrevendo, daria pra publicar não só uma crônica depois daquela noite, eu tinha material pra um livro inteiro! E algum puto conta pra ele que eu escrevo. E ele me lê inteira duas horas depois da publicação. E ele me liga "Cara, eu entendo teus antigos amores! Eu entendo porque eles te faziam sofrer tanto... Você fica linda sofrendo, cara! Tú és uma artista!" Fiquei na dúvida se aquilo era a coisa mais escrota que eu já tinha ouvido, ou se a mais linda. Filho da puta.