sexta-feira, 22 de abril de 2011

Ruídos. Raul chegou em casa. Ainda que tivéssemos filhos, eu reconheceria os passos de Raul. Aquele par tênis que não permitia que seus passos fizessem lá muito barulho, aquele passo meio folgado, meio ansioso. Aqui, do andar de cima do nosso sobradinho, eu grito qualquer coisa só pra que o Raul saiba que eu tô aqui. Só percebo agora que o quarto tá fedendo a cigarro. Ele vai reclamar. Vai reclamar de novo. Vai vir com aquelas conversas de que eu já tenho idade pra saber que isso acaba com o meu pulmão, que qualquer dia vou acabar morrendo de câncer. Raul, raulzinho, é a transcendência. Eu preciso transcender. Pensei tantas vezes em trocar Raul por outros homens, mas fica difícil depois de ter deitado sobre aquelas costas. Aderi a mais cigarros. Afinal, não falamos de costas aleatórias. Foi ali, sobre aquelas costas, que eu ouvi. Como é que aquelas mulherzinhas todas cheias de si falam? Os sininhos!? São sininhos que se ouve quando você sente aquela coisa de "puta merda, achei o cara"? Eu que me achava tão desmedida, tão cheia de afinidade com o mundo onde tudo é permitido e nada proibido, eu que atravessava madrugada entre um trago e outro, achando que com isso garantiria meu passe de estudante reacionária em prol da liberdade. Nosso sobradinho, eu sentada sobre a máquina, você esquentando alguma coisa pra comer no microondas. Daqui a pouco você sobe aqui pra reclamar do cinzeiro cheio, do cheiro de cigarro. Raul sempre foi o cara que entendeu que eu, no fundo só tava afim de me embriagar de palavra. Só não entende o diabo do cigarro. Quem não escreve, quem não vive a vida desse nosso jeito boêmio, desse nosso jeito tão cheio de arte, tão cheio de poesia (porque só vivendo assim que Raul e eu não nos sentimos mortos) não entende e tão pouco entenderá. Amanhã lá vem a dor de cabeça fodida, a ressaca de quem dorme caído e abraçado à garrafa de vinho. Mas eu só estou aqui, sem vestígio de vergonha pra despir o meu amor. Embriagada de palavra, de verso, de tradução. Tentando decifrar o sentimento mais intenso e assim, fodendo comigo, perdendo sangue, sob o lençol branquinho, branquinho mas tão recheado de palavras abortadas. Lá vem a dor da perda, a dor física desse aborto, todo meu sexo sendo só dor e jorrando sangue para todos os lados e eu sem me importar, só querendo me livrar dessa vidinha medíocre que me habita, só querendo que vá embora, que saia do meu corpo cada ínfima palavra, que outrora usaria e insistiria em usar. Palavras que não mais tratarei de usar pois não quero jorrar assim de novo. Quero ficar sã. Quero ficar sóbria. Quero me fechar, quietinha, inerte em meu quarto. Raul, não vem fazer com que o assoalho cante e denuncie seus passos. Eu te sinto, eu te ouço mas não chega perto. Deixe-me comigo mesma enfrentando sozinha todo meu purgatório em vida. Deixe-me comigo e com todo meu silêncio de gente carente e violentada.